Tratado sobre o amor

Numa novela que é um autêntico tratado fenomenológico do amor, Musil sugere que o amor é um acaso que se torna um hábito.

«– Acredite em mim, é só uma questão de hábito. Se, digamos, aos dezassete ou dezoito anos tivesse conhecido um outro homem e casado com ele, o tentar imaginar-se como mulher do seu marido actual ter-lhe-ia custado exactamente o mesmo.»
A Consumação do Amor, A portuguesa e outras novelas, trad. João Barrento, p. 166.

«Então, secretamente, veio-lhe à ideia: algures no meio desta gente, vive alguém que não é a pessoa certa para nós, um ser diferente, mas teria sido possível adaptarmo-nos a ele e, nesse caso, nunca conheceríamos nada do Eu que somos hoje. Na verdade, os sentimentos só conseguem viver numa longa cadeia em que se apoiam reciprocamente, e o que importa é tão-só que cada ponto da vida se alinhe ao lado dos outros sem lacunas; e há centenas de maneiras possíveis. (…): este amor é um acaso; por um acaso qualquer, aconteceu, e o que fazemos é segurá-lo.» idem, p. 175.

Julgo que Musil usa acaso como o brief, kind delight de Yeats. Porém, a sensação com que ficamos em relação ao hábito é que será semelhante ao hábito de navegar em alto mar, num alto mar por vezes calmo por vezes tempestuoso, onde o barco não pára de oscilar. Musil não usa esta metáfora, nem o afirma directamente, mas abundam as oscilações de uma forma que me pareceu muito pouco fortuita. Temos: “oscilação enigmática”; “tensa oscilação”; “leve oscilação”; “som vago, oscilante”; “largos círculos oscilantes”; “oscilação ligeira e constante do comboio”; “oscilando branda e longamente”. Deste modo, aparentemente, Musil evita por larga margem cair numa leitura behaviourista do amor.
Mas a novela, cómica e talvez cinicamente, é a história de uma traição: é a introspecção de uma mulher que trai. Escrevo talvez porque, detendo-me a pensar nisso, comecei a tropeçar no carácter potencialmente contraditório das minhas conclusões. Um hábito não implica a fidelidade ao próprio hábito, nem a sua quebra o salto lógico usual — a conclusão de que ele já não nos serve. No entanto, mesmo que se admita isto, trair é sempre perturbador, como assistimos em Claudine. A pergunta que parece ficar no ar é então: será a traição ela mesma também um mero acaso, que pode ou não tornar-se um hábito, ou é um acaso que decorre de uma necessidade interior, por muito escondida que nos esteja? Claudine confirma diversas vezes, analisando os seus sentimentos, que ama o seu marido — e ainda assim trai. Musil termina com uma reflexão curiosa: tal como é possível existirmos para todos e, apesar disso, como se fosse apenas para um único ser, o amor pode funcionar de igual forma. Pelo menos o amor de Claudine.

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2 respostas a Tratado sobre o amor

  1. Sara diz:

    Humm, eu que tenho uma visão onírica do amor e dos sentimentos, acredito que a traição seja fruto de uma necessidade interior. Não gosto de pensar que a causa seja o mero acaso.

  2. pmramires diz:

    Também me parece estranho que seja «apenas» fruto do acaso. Mas deve haver de tudo.

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